Deve-se acreditar nos arquitectos, na tradição?1
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CONSTRUACÇÃO

"Construo a minha casa muito devagar. É a minha última tarefa. Forço os operários a trabalhar lentamente. Estão espantados. O capataz supõe que sou louco. Nunca custou tão caro uma casa de um só piso. Quando ficar pronta já nada mais terei a fazer. Seria estúpido procurar sobreviver-me. Sou um homem sensato."
             
(HELDER, 1980: 141-142)




Um trecho do “Poemacto II” de Herberto Helder (HH) ocupou parte de um pequeno texto que escrevi para acompanhar a publicação do projecto da Casa de Férias2. Importa desmistificar desde logo qualquer tradução directa do poema de HH neste trabalho de arquitectura - na verdade, diria mesmo, de qualquer obra literária em arquitectura. Sobretudo tratando-se da escrita de HH, seria um exercício vão e essa relação só poderia passar pelo sujeito leitor que, depois da leitura e dependendo da profundidade do murro então sentido, seria ou não levado a aplicar essa experiência no seu ofício do pensamento.

Neste caso, arrisco dizer que essa relação foi essencialmente lúdica, num jogo permanente com o “Poemacto II” e excertos de outros poemas. Uma relação que vou procurar realçar, expondo um lado menos conhecido do projeto desta casa que pode ser consultado em diversos suportes, com fotografias do Tiago Casanova3. As casas de HH, neste e noutros poemas, permitem-me pensar que a sua leitura, naquele momento, foi inaugural para muitos mais projectos. Foi sobretudo inaugural para um leitor (ignorante da sua obra) perceber a potência da matéria em jogo e a sua centralidade na vida do Homem.





Obra na sua fase de estruturas – fotografia de Hugo Barros



A estrela voltaica queimando
  
a minha
obra morosa afina sombriamente cada cara
soldada
ponto a ponto,
                      sobre as válvulas, sobre
a luz que se abre e se fecha
                                na carne
lunar, implacável.
Tudo faísca: a fruta
que se apanha, o feixe
vertebral, os orifícios de sangue
entre os poros
                        da madeira.
                                Respira,
dói
[...] Toda a obra.
Dói.
A memória maneja a sua luz, os dedos,
a matéria. [...]

(HELDER, 2004: 353-354)

                



Este trecho de “O Corpo o Luxo a Obra” é particularmente significativo para demonstrar como a poesia de HH ganha uma autonomia material. Transforma-se mesmo em matéria por direito próprio, ultrapassando em muito a condição de representação ou de mera composição metafórica. É, sem querer (?), uma lição para fazer arquitectura que, tendo a matéria como condição intrínseca, raramente ganha semelhante condição e fica-se pela representação, pela repetição de modelos ou invariantes históricas mais ou menos identificáveis, sem uma plena dignificação da matéria.


É certo que a prática da arquitectura pressupõe uma distância procedimental com quem efectivamente constrói. Encurtar essa distância, para quem concebe não perder o sentido da matéria que projecta, só pode ser conseguido por meio da elaboração da linguagem desenhada, escrita, oral, gestual sobre a obra. É particularmente irónica a primeira passagem de HH aqui citada porque, ao contrário do sentido pejorativo dado normalmente à lentidão do processo de projecto e construção, cada vez mais entendemos a importância da presença demorada, ainda que ágil, junto da obra, porque só a obra importa e é a única coisa que nós, arquitectos, realmente não fazemos. Apesar do natural aborrecimento causado por atrasos na edificação, confesso uma outra perspectiva que, a mim, secretamente, me satisfaz: esses atrasos, no fundo, não constituem apenas perdas e aborrecimentos; são antes ganhos de tempo para (re)pensar a obra, uma vez que esta, depois de pronta, escapa ao pensar-fazer do arquitecto.

Se a relação que estabeleço entre o projecto da Casa de Férias e a poesia de HH só pode ser lúdica, nunca operativa, interpretativa ou casuística, é porque ela própria é também arquitectura, quer no sentido composicional da distribuição das letras na folha, quer no sentido de uma espécie de abrigo que nos expõe a nós mesmos. Fazer arquitectura pode ser, primeiro que tudo, construir casas, ao contrário das enganadoras ideias do traço, do estilo e do desenho, meros auxiliares mais ou menos benéficos ao exercício principal. Trata-se de aproximar as palavras da acção transformadora,4 premissa tão cara a HH na escrita, aqui aplicada à arquitectura.




JOGO DE ESPELHOS

O pedido deste projecto tinha subjacente uma componente familiar. Tratava-se de uma casa para convívio de uma família alargada, também desejada como novo espaço para uma recém chegada criança. Havia, como sempre, um problema de espelhos (com o triângulo: arquitecto, cliente e obra), de posicionamento perante eles, aqui reforçado pela importância da infância. A própria infância era recurso para a infância da obra.

“Saturno devorando um filho”, obra de Goya5 que surge na capa da edição-súmula de Ou o Poema Contínuo (2001), remete-nos para o processo autofágico, permanente e indecifrável, entre HH e a obra: esta é criação do autor, mas este é simultaneamente criado pela obra, devorando-se mutuamente – HH ou o poema contínuo. O crescimento do monstro da obra devora-nos o controlo sobre a mesma e não o podemos/devemos contrariar – “O poema dói-me, faz-me” (HELDER, 1961: 43). Mas o jogo de espelhos materializa-se mesmo e deixa de ser só elemento inerente ao processo.

O centro de um dos principais eixos visuais da Casa de Férias, no piso 1, terminava num lavatório do quarto principal. Merecia uma janela. Abri-a, mas fiquei sem o espelho. Maldito espelho que nos tira os olhos do mundo! Mas é “ possível ainda cortar ao meio o ofício de ver - e num lado há espelhos bêbedos, no outro um cardume ilegível de sons obscuros”(HELDER, 2020: 186).

Supõe-se que quem está perante o lavatório numa tarefa técnica (fazer a barba, por exemplo) não terá vagar para fitar a paisagem mas, perante os espelhos bêbedos que giram e reflectem rostos e paisagens, a abertura da janela “serve” nem que seja para “ouvir” o exterior com o olhar “cortado ao meio” e fazer belas confusões entre a realidade do eu, da paisagem e os seus reflexos.

A janelaespelho levou-me ao jogo de possibilidades para o utilizador do lavatório: uma portada quadrada de acrílico translúcido tapa a janela, permite passar luz e, por sua vez, tem agarrada uma portada circular de espelho, dupla face, ao centro. O utilizador pode ver pela janela, abrindo a portada de acrílico, usando, ainda assim, o tardoz do espelho; pode fechar a portada de acrílico e ver-se ao espelho, tendo, ainda assim, luz natural; pode também ter um novo enquadramento sobre o real, o de um óculo circular, e, ainda assim, ver-se no espelho rebatido.





janelaespelho – fotografia de Hugo Barros




AMADORISMO E ARQUITECTURA

Como profissão, nos moldes actuais, é mais ou menos consensual que só podemos falar do arquitecto já na época moderna, com o Renascimento. E, mesmo depois disso, os casos notáveis de arquitectos não-arquitectos são prolíferos, talvez por ser um métier tão elementar como a palavra casinfância sugere.

Poderia o neologismo casinfância estar para a pré-história da arquitectura como o poemacto estaria para a poesia?

É no tempo da descoberta do projecto, na sua infância, com desenhos, textos, ou pensamentos que agarramos por meio de um instrumento qualquer, que o amadorismo é mais importante. É quando já temos um pedido em mãos, mas ainda podemos desenhar na mesma folha uma cadeira do tamanho da casa. É quando podemos metamorfosear tudo, sem que haja compromisso com qualquer pragmatismo realista. A metamorfose, esse mecanismo tão particular em HH, tem dois tempos em arquitectura: antes da obra, a metamorfose ainda possível do projecto; e depois da obra, a metamorfose alheia ao arquitecto e que decorre da exposição dela aos agentes naturais, à acção humana e do tempo. Interessa-me aqui abordar a primeira.


"existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose. Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo."

(HELDER, 2020: 23-24)



Também nós acabámos por pintar a casa de amarelo, embora a tenhamos visto vermelha quando visitámos inicialmente o lugar e ouvimos o cliente imaginá-la preta. Para quem atravessa a severidade dessa metamorfose, mesmo antes de ver pedra sobre pedra, tem no “Poemacto II” a melhor definição para a faina da arquitectura:


“o amor das coisas no seu/ tempo futuro/ é terrivelmente profundo, é suave,/ devastador”

(HELDER, 2014:110)





Esquisso de pesquisa do projecto, casa e cadeira – Hugo Barros




KIT CONTRA O AMORFISMO

Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

– Era uma casa – como direi? – absoluta.

Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.

(HELDER, 2014: 110)








fachada nascente e norte – fotografia Tiago Casanova



O open-space, pedido pelo cliente para o piso térreo, vulgarizou-se contemporaneamente, mas em vez de recuperar a lógica das antigas tipologias de espaço social único – em habitações populares rurais, por exemplo –, tem adquirido uma roupagem amorfa, de uma horizontalidade quase digital e muitas vezes sem grandes jogos de luz ou de caracterização dos espaços. A explicação não é fácil nem interessa no presente ensaio. Mas o impacto que teve em mim um dos mais belos trechos do “Poemacto II” conduziu a uma torrente de possibilidades, desmontando esta ideologia de open-space asséptico que estava culturalmente implícita no pedido.6

Assim, na implantação da casa (quadrado de 10m x 10m), operámos uma série de acções arquitectónicas: a projecção de uma bow-window para a sala de jantar a Norte; a subtracção de um alpendre com esplanada a Sul; o posicionamento do necessário pilar a meio da casa, mas não a meio da sala por via da acção anterior, organizando assim um solário/circulação e a sala de estar.

À parte deste eixo de simetria, a distribuição da luz é ainda mais heterogénea, com uma janela a poente para a área de cozinha e, do lado contrário, apenas o vão para a escada a meio, deixando nichos mais protectores e escuros nos cantos correspondentes.

Para subirmos para o piso 1, saímos literalmente do quadrado da casa, através da escada que se projecta sobre o terreno como um órgão-máquina. Nesse piso dos quartos, em vez de um normal corredor de acesso, preferimos sobredimensioná-lo, combatendo o “excesso” de exposição social do open-space, e tornando-o num espaço polivalente, com enfoque no grande janelão ao fundo, onde embutimos uma secretária.

O mobiliário da cozinha também foi concebido a partir da ideia de jogo e kit, com a construção de módulos móveis que encaixam numa estrutura fixa e podem, a qualquer momento, ser desarrumados, rearrumados e reagrupados de outras formas.

Se a ligação entre piso térreo e piso 1 é feita pelo orgão-máquina que é escada, os restantes órgãos ou peças formam a máquina. Poderíamos lembrar o conceito de casa como máquina de habitar, cara ao advento corbusiano do movimento moderno. Mas, neste caso, foi a partir do estabelecimento de uma racionalidade quase palladiana de composição, grelha de suporte ao problema construtivo da madeira, que se procurou atribuir outros valores narrativos ou, se preferirmos, líricos, à vivência do espaço.

Assim, tal como o usuário do espaço completa, in loco, as intenções do projecto, experimentando essas subversões narrativas que agem sobre a regra, o leitor da máquina lírica de HH aprende a funcionar com o texto, justamente a partir da sua base de programação de geometrias frásicas, combinações e repetições que se revelam operativas com a leitura – utilização subjectiva e aberta da máquina.



Era tudo uma máquina com as letras
lá dentro. E eu vinha cantando
com a minha paisagem negra pela neve.
E isso não acabava nunca mais pelo tempo
fora. Começo a lembrar-me.
Esqueci-te as barbatanas, teus olhos
de peixe, tua coluna
vertebral de peixe, tuas escamas. E vinha
cantando na neve que nunca mais
acabava.

(HELDER, 2014: 195)



Se este é, sem dúvida, um momento crítico para as orientações e caminhos na disciplina da arquitectura, então olhemos para o efeito ampliado da poesia (e não só a de HH) sobre todas as coisas da vida:

“a lâmpada faz com que se veja a própria lâmpada. E também à volta”

(HELDER, 2013: 136)





interior do piso térreo – fotografia de Hugo Barros



(1)- Citação de “Os ritmos” de Apresentação do rosto de Herberto Helder (2020: 60).
(2)- Projecto que desenvolvi no ATELIERDACOSTA, entre 2016 e 2021 (data de término da obra - fase 2).
(3)- Cf.: UFFELEN, Chris van (2023: 24-27).
(4)- “Palavras” aqui entendidas como verbalização de ideias ou argumentos que usamos em arquitectura - primeiro para nós mesmos e depois para todos - para justificar o projecto na sua elaboração.
(5)- Tema mitológico vastamente retratado, foi por mim retomado recentemente, a partir de um quadro de Rubens, numa Cenografia da peça de dança SCHULD de Sara Garcia, em 2021.
(6)- Salienta-se aqui que o poema desmonta ideologias, nunca os espaços em si, patamar terminal do nosso exercício da arquitectura.




Referências bibliográficas

HELDER, Herberto (2020), Apresentação do Rosto, Porto: Porto Editora.
HELDER, Herberto (2014), Poemas Completos, Porto: Porto Editora.
HELDER, Herberto (2013), Photomaton & Vox, Lisboa: Assírio & Alvim.
HELDER, Herberto (2004), Ou o Poema Contínuo, Lisboa: Assírio & Alvim.
HELDER, Herberto (2001), Ou o Poema Contínuo (súmula), Lisboa: Assírio & Alvim.
HELDER, Herberto (1980), Os Passos em Volta, Lisboa: Assírio & Alvim.
HELDER, Herberto (1961), A Colher na Boca, Lisboa: Edições Ática.
UFFELEN, Chris van (2023), Timber Homes: Taking Wood to New Levels Hardcover, Berlim: Braun Publishing.






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